quarta-feira, 24 de agosto de 2011

REPORTAGEM DA REVISTA ÉPOCA

Edição 137 01/01/2001

SAÚDE - 11

Viveremos 100 anos ?

* Alexandre Kalache
Em fevereiro passado, minha tia-avó mais querida completou 100 anos. Ao nascer, mal havia telégrafo e eletricidade. Água encanada era privilégio de poucos. Na adolescência, aprendeu a usar o telefone. Pouco depois, o rádio. Esteve presente na inauguração do primeiro cinema de São Paulo. Aos 50 anos, ganhou uma televisão – pura mágica. Nela, viu o homem pisar na Lua. Aos 85 anos, custou a acreditar que a carta enviada por fax chegava às minhas mãos em tempo real. Agora quer conhecer “a tal da internet” para se comunicar comigo por e-mail.
Durante a vida, testemunhou o surgimento do automóvel, dos aviões (de planadores a supersônicos), da energia nuclear. Vacinas erradicaram doenças, antibióticos foram descobertos, cirurgias inimagináveis viraram rotina. Novos medicamentos controlam seu mal de Parkinson e um marca-passo melhora a qualidade de sua vida. Ao mesmo tempo, convive com ameaças insuspeitáveis. Quem poderia ter previsto o vírus Ebola, a Aids e a vaca-louca? Ela, minha tia-avó, resume a História do século XX e um grande desafio: a procura incessante por mais e melhores anos de vida. Essa busca se converteu na grande conquista de nosso tempo.

Em 1900, a média mundial para a esperança de vida ao nascer não atingia os 40 anos. Cem anos depois, beira os 70. Em 2025, os brasileiros viverão em média 75 anos. O maior desafio do novo milênio será garantir qualidade de vida aos sobreviventes – nós, adultos de hoje, idosos de amanhã. A queda nas taxas de fecundidade não tem precedentes. Em 1970, uma mulher brasileira esperava ter ao final de sua vida reprodutiva seis filhos em média. Hoje, apenas 2,1. Na maioria dos países, os governos não se deram conta de que a população envelhece. Em 2025, 15% dos brasileiros serão idosos. Na nova realidade, os padrões do passado serão de pouca valia.

Meu avô tinha 17 irmãos e irmãs. Seus descendentes de minha geração tiveram um ou dois filhos. E estes relutam em iniciar a própria família. Quando meu avô sofreu um derrame, seu tempo de sobrevida transcorreu em casa. Era atendido por um exército de mulheres da família e agregadas que não sonhavam com trabalho remunerado. Os hospitais tinham poucos recursos a oferecer. Enquanto a parcela de idosos se expande rapidamente, diminui a quantidade de potenciais “cuidadores”.

Estamos no limiar de explosões do conhecimento. Quem pensa que o século XX foi extraordinário não refletiu sobre as promessas dos próximos séculos. Os bebês de hoje têm grande chance de chegar aos 100 anos. Até o Palácio de Buckingham já percebeu isso. Recentemente a rainha Elizabeth enviou aos cidadãos britânicos um telegrama de cumprimentos pela passagem de seu centésimo aniversário. A tradição acabou. A capacidade administrativa do palácio já não dá conta dela.

Salvo algo muito inesperado – como doenças devastadoras ou desastres naturais por negligência humana –, o envelhecimento populacional será uma certeza no século XXI. Em 2025, nove países terão mais de 20 milhões de idosos: China, Índia, Estados Unidos, Japão, Indonésia, Brasil, Rússia, Alemanha e Paquistão.

E se o limite da vida humana for ampliado nesse meio tempo? A conclusão do Projeto Genoma Humano abrirá perspectivas extraordinárias. A eliminação de enfermidades como Parkinson e Alzheimer desponta no horizonte. Será bom esse mundo envelhecido? Tudo depende de fatores socioeconômicos.

Nos países desenvolvidos, o prolongamento da vida é acompanhado de melhores condições de saúde. Em grande parte porque o material humano que envelhece hoje é melhor. Esses indivíduos receberam boa nutrição na infância, sofreram menos infecções e tiveram amplo acesso a informações sobre saúde. Muitos corrigiram a tempo hábitos nocivos – abandonaram o cigarro, modificaram a dieta, abraçaram uma atividade física.

Quem pensaria há bem poucos anos em cirurgias cardíacas radicais ou em transplante de fígado? Ou em métodos precoces para o diagnóstico de doenças? Tais oportunidades vão se expandir exponencialmente nos próximos anos. Um simples exame de sangue poderá detectar vários tipos de câncer. Uma empresa da Califórnia está prestes a lançá-lo por US$ 80.

O gasto anual per capita em saúde não chega a esse montante em vários países em desenvolvimento. O custo total de um tratamento de câncer (exames, cirurgia, radioterapia, medicamentos) supera muitas vezes o valor gasto anualmente pelos países em desenvolvimento com a saúde de cada indivíduo. Portanto, os beneficiários da ciência serão os privilegiados cidadãos do Hemisfério Norte e os poucos do Sul com acesso às maravilhas da biotecnologia.

O envelhecimento populacional exacerbará as disparidades. Nos países ricos, a velhice vai ser uma das melhores fases da vida – com boas aposentadorias, seguro social com direito aos serviços de saúde, meio ambiente agradável e oportunidades de lazer. A realidade será bem diferente nas nações em desenvolvimento. Abaixo do limiar da pobreza, milhões de idosos amargarão a falta de serviços básicos. Excluídos socialmente, sobreviverão em contextos em que vão imperar o preconceito e a violência. Estarão vulneráveis em todos os sentidos.

Ainda há tempo para traçar políticas a favor de um envelhecimento que valha a pena ser vivido. Mas o relógio corre rápido. Em 2025, três quartos do 1,4 bilhão de idosos do mundo estarão nos países em desenvolvimento. É preciso repensar o ciclo de vida. A divisão tradicional, que reserva a juventude à formação profissional, a maturidade à produção e a velhice ao ócio, tem de mudar. É necessário intercalar essas etapas. As experiências educacionais devem ser retomadas ao longo da vida, de forma a criar oportunidades de trabalho e garantir momentos de lazer.

Qualidade de vida em qualquer idade – sobretudo na velhice – está condicionada à capacidade funcional, à independência, à auto-estima – em última análise, à saúde. Em sua Declaração de Brasília para o envelhecimento ativo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) afirmou em 1996: “Um idoso saudável é um recurso para sua família, para a comunidade, para a economia”. Já é tempo de criarmos uma sociedade que reconheça a contribuição dos idosos, confira direitos a todos e combata a discriminação por idade. A sociedade de amanhã será uma sociedade envelhecida. Preparar-se para ela é obrigação de todos.

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