sábado, 1 de maio de 2010

Entrevista com Gaudêncio Frigoto

Gaudêncio Frigotto

Realizada em: 24/11/2009

Atuação: Professor da Faculdade de Educação da UERJ, atuando no Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana.

Obras: FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Educação e Crise do Trabalho: perspectivas de Final de Século. 9. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008; FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.); CIAVATTA, Maria (Org.). Ensino Médio - Ciência, cultura e trabalho. Brasília: MEC, 2004; FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. Ensino Médio Integrado: Concepção e contradição. São Paulo: Cortez, 2005.

Juventude e escolarização: os sentidos do Ensino Médio

Salto – Em entrevista ao site "Ensino Médio em Diálogo", em parceria com a Universidade Federal Fluminense e a Universidade Federal de Minas Gerais, o senhor disse que terminou uma pesquisa recentemente sobre o que é o Ensino Médio. Quais foram as principais conclusões desse trabalho?
Gaudêncio Frigotto – Uma primeira conclusão é que, de fato, nós praticamente não temos Ensino Médio no Brasil, porque dos jovens que deveriam estar no Ensino Médio apenas 50% estão, mas somente metade desses, 25%, o fazem na idade apropriada. Este seria o primeiro aspecto dramático, eu diria, que contrasta muito com o país, que é colocado hoje no cenário do G20, com uma décima segunda economia em termos de produção no mundo, que é o contraste entre o potencial econômico e o capital político. E a questão do acesso a este nível, que a Constituição diz que é a etapa final da educação básica. Essa é a primeira grande conclusão.
Uma segunda conclusão é exatamente a qualidade desse Ensino Médio. Nós temos 60% desses jovens fazendo o Ensino Médio noturno, e ali nós vamos encontrar uma grande desigualdade entre aquilo que seria o Ensino Médio, que dá uma base para entender o mundo da vida, a cidadania, o mundo do trabalho, a produção, a ciência que está na produção, mas que está dentro de casa também. O próprio uso daquilo que existe em benefício do que o ser humano produz, por meio do conhecimento, é negado, porque esse Ensino Médio não permite que esse jovem decodifique isso. Apenas 1% da matrícula do Ensino Médio é feita em excelentes escolas, em colégios de aplicação, ou nas redes das escolas técnicas, as antigas redes. Ali você tem uma excelente base para discutir os valores, a ênfase que é dada ao ensino muito voltado para o mercado. (…) Agora custa caro isso, custa em média 6, 7 mil reais por aluno/ano. Nós gastamos 2, ou 1,5 mil reais nessa etapa da educação básica. O que nós oferecemos de base, de laboratório, não só de física, de química, mas também de arte, de cultura, de linguagem, de espaço para a adolescência se exercitar, como o esporte, etc., tudo é muito precário.

Salto – Aliás, nessa mesma entrevista, o senhor falou que esse é um grande desafio, aumentar o custo/aluno do Ensino Médio, que hoje está nesse patamar que apontou.
Gaudêncio Frigotto – Sim. Na reforma dos anos 90, uma das medidas foi exatamente nivelar por baixo, porque o custo de aproximadamente 5, 6 mil reais por aluno/ano era considerado inadmissível no país. Isso revela, de um lado, uma classe dirigente obscurantista, mas cínica também, porque para os filhos dessa classe dirigente não se medem esforços, até mesmo para fazer estágio no exterior. Mas quanto ao direito social, inclusive posto na Constituição, se passa ao largo. O que Anísio Teixeira já tinha observado nos anos 50, dizendo que somos uma sociedade em que se proclamam valores - os empresários proclamam valores para a educação, a justiça proclama, o clero proclama, a universidade proclama - mas onde está a força política e organizativa que, de fato, define isso? Normalmente se tomam dois exemplos emblemáticos: um é a Coréia do Sul, e o outro é Cuba. Eu sempre digo o seguinte, importem Cuba e importem a Coréia, tem os dois gostos. Mas que a classe dirigente importe um ou outro.

Salto – Outro assunto que sempre esteve em pauta quando estivemos juntos, em outras ocasiões, é a dicotomia entre ensino profissionalizante e ensino propedêutico, aquele que proporcionaria uma formação mais geral ao estudante. O senhor sempre apontou que é preciso avançar nessa discussão. Já avançamos?
Gaudêncio Frigotto – Estamos avançando, mas muito lentamente e muito contraditoriamente. Qual é a ideia se olharmos a base em que está não só o processo produtivo, mas todas as dimensões da vida? Dentro de casa nós temos a televisão, que é uma tecnologia de geração bastante recente, mas a televisão também está mudando muito. Temos um conjunto de aparelhos que usam uma nova base científica e técnica, e isso acontece também no mundo do trabalho. Então, para dominar esses códigos, é preciso uma base, e o que daria essa base seria o Ensino Médio. O que acontece é que nós somos uma sociedade que foi se constituindo não para produzir técnicas e tecnologias, mas para importar, copiar.
As propostas para o Ensino Médio são muito mais avançadas do que as que existem na maior parte das secretarias de governo. Queremos tecnologias, queremos base científica, queremos base cultural, queremos um diálogo desses jovens com a realidade. Eu fico surpreso. De modo geral, nós temos uma cultura do atalho, fazer tudo pelo atalho. Agora, a base dessa não veiculação está exatamente nisso, nós fomos definindo a sociedade para o trabalho simples. E, de tempos em tempos, entramos em crise, a economia cresce na base. A Petrobras precisa hoje de milhares de técnicos, a Vale não tem gente para trabalhar, por isso importa. (...)

Salto – O senhor ia falar se nós já avançamos nessa discussão sobre o ensino propedêutico e o ensino profissionalizante.
Gaudêncio Frigotto – Eu acho que avançamos teoricamente, na prática estamos lentos. Porque alguns estados ainda separam a educação básica da educação profissional, estritamente, e isso cria um imaginário muito distorcido, de que é possível ter uma boa educação técnica sem uma base. Isto vai acarretar fenômenos, como em dezembro de 2008 (…), quando empresas como a Petrobras, ou a Vale do Rio Doce, precisavam de dez, doze mil técnicos e não existiam, porque aqueles jovens que fizeram o Ensino Médio, que têm a base, muitas vezes não têm a formação profissional, ou outros que não querem isto, querem ir para universidade ou até para o exterior. De acordo com o atual presidente do IPEA, Márcio Pochmann, nós temos milhares de jovens, são 160 mil, dos melhores escolarizados, que vão para o exterior, até por outras razões culturais. A classe média não quer que seus filhos trabalhem manualmente, ou tecnicamente, etc. Esses jovens não querem esse mercado, e para os que querem, e precisam, seria fundamental que tivesse esse mercado, mas eles não têm as qualificações gerais e técnicas. Eu sempre digo, com muita tranquilidade, que uma educação profissionalizante sem uma educação básica é uma pobre educação profissionalizante. E acredito que as políticas que separam isso deseducam e despreparam até para a competitividade. E qualidade nessa competitividade é o que precisamos. Hoje, por exemplo, para ter o Selo ISO e exportar, os trabalhadores precisam ter Ensino Médio, é exigência internacional, de pressão da concorrência. O que fazem muitos dos empresários? Jogam muitos dos seus funcionários em cursos rápidos, quase que compram o diploma, porque há uma formalidade. Essa é uma mentalidade atrasada, esse nó que nós temos, é um nó muito mais complexo e que leva tempo para ter uma política de Estado efetiva de continuidade para romper com essa dualidade.

Salto – A partir desse fato, como seria a construção de um currículo de fato emancipatório para esses jovens brasileiros?
Gaudêncio Frigotto – Olha, um currículo que pudesse dar essa base não é um currículo muito extenso. Há uma distinção, no processo de conhecimento, entre pergunta e questão com problema. Eu vejo uma tendência muito equivocada nas organizações dos currículos, que é para cada problema novo tentar inventar uma nova disciplina. Pelo contrário, temos que debater uma base curricular que, em sua unidade, permita o diverso. Essa é exatamente a definição de conceito, o conceito permite não uma unilateralidade, mas , sim, permite que, a partir do conceito, se possa ter uma base mais ampla. Uso um exemplo de um jovem que veio da Itália fazer um estágio no Brasil sobre a arte culinária. Ele não quis ir para a universidade, e uma jornalista perguntou a ele: "Qual é a forma de fazer um bom risoto e ficar rico fazendo esse risoto?" Ele disse: "É uma má pergunta, porque nada tem fórmula, tudo tem base. E eu só cozinho com um tipo de arroz, o que me permite adequá-lo ao gosto. Este arroz eu aprendi da ciência, agora, o gosto eu aprendi do romance, da literatura, do cinema, e o tempero eu aprendi com minha avó". Olha que junção sábia. A ciência teve um papel importante, imagina se ele vai cozinhar igual em Milão, em São Paulo, no Rio de Janeiro, na China... Cada local tem um gosto, e ele vai buscar, em cada lugar, a solução. E é essa um pouco a lógica da montagem do currículo – para cada problema querer inventar uma disciplina.

Salto – Neste mesmo site, "O Ensino Médio em Diálogo", o senhor falou do trabalho interdisciplinar no Ensino Médio. O senhor dizia que não adianta juntar áreas, por exemplo, se as linhas de pesquisa sobre determinado assunto não têm nenhuma relação. Como o senhor entende, então, a interdisciplinaridade no Ensino Médio?
Gaudêncio Frigotto – Exatamente, a pergunta anterior demanda a interdisciplinaridade. Porque a realidade é interdisciplinar, não é o pensamento que é interdisciplinar. Então, a interdisciplinaridade é o concurso de vários campos específicos de saber para poder entender determinado fenômeno, o problema está no fenômeno. Agora, qual é o problema da interdisciplinaridade se observarmos o fenômeno de forma linear, ou de forma determinista, ou de forma contraditória? Essas três formas de ver o real, se eu não entro em acordo, ou se minimamente não debatermos isso, vamos querer juntar coisas que não se juntam. O pensador Henri Lefebvre, filósofo, dizia que é como se fazer uma sopa científica, uma sopa tecnológica. É por isto que as escolas que fazem a interdisciplinaridade têm um professor que está só nesta escola, têm uma discussão permanente, há um tempo, uma articulação, e também há conflito, não no sentido doentio, há a disputa, que é parte do conhecimento. Na verdade, a interdisciplinaridade é uma disputa de sentido e significado sobre o real. Então, quando a gente tem disponibilidade, quando o aluno tem o direito de aprender, quando a gente tem uma perspectiva, de fato, de ajudar o aluno a não ser um copiador, mas a ser um decodificador, construtor de conhecimento, esta base é uma base sempre interdisciplinar que pressupõe confiança, pressupõe também o conflito e a disputa. E o que vai definir o conflito na ciência não é a imposição, é a própria realidade. A história vai mostrando quem é que tinha razão ou não. Durante muitos séculos a humanidade foi dirigida para pensar num sistema geocêntrico, e hoje seria uma piada se alguém quisesse defender isso. Porque a própria realidade, e a possibilidade de adaptar essa realidade, desmentiram as concepções anteriores. Então, a interdisciplinaridade é uma necessidade, mas é um grande problema, pois exige tempo, uma outra forma de organizar o processo pedagógico. Nessa pesquisa a que eu fiz referência, eu peguei três escolas que seriam "modelo de um nível médio de qualidade". Só duas têm essa perspectiva de trabalho interdisciplinar, a outra, que é uma macroestrutura, faz o Ensino Médio muito bom, mas porque tem um aluno muito bom, tem professor com mestrado e doutorado, mas mesmo assim a formação desse jovem é mais fragmentada, é mais precária, e ele como cidadão está menos preparado. Esse eu diria que é um nó muito complicado.

Salto – O senhor é um defensor do Ensino Médio integrado. Já conversamos isso em outras ocasiões, e em várias entrevistas o senhor já comentou sobre este tema. O que é, então, na sua opinião, o Ensino Médio integrado?
Gaudêncio Frigotto – Eu utilizo muito uma expressão da música do Milton Nascimento, que o Ensino Médio é uma travessia. Quer dizer, tem uma realidade, exatamente essa que nós já discutimos, uma separação, um dualismo brutal entre a ideia de formar o apertador de parafuso, aquele que tem que fazer bem feito o que se manda. E uma ideia do direito social e subjetivo do jovem nesse tempo de infância e juventude incorporar os conhecimentos, os valores, em todas as áreas, como base. Então, se o ensino é básico, ele é básico e tem esse ponto; assim, o ensino profissionalizante teria que ser pós-médio, seria a universidade. Agora, se é um ensino básico, ele em si é profissionalizante, por dar essa base conceitual, interpretativa, etc. O Ensino Médio integrado é uma imposição da realidade, é uma tentativa, numa travessia, de fazer um nível médio não de três anos, mas em quatro anos, para aquele jovem que está ali e ainda precisa entrar no mercado de trabalho, paradoxalmente numa sociedade que tem pouco emprego – essa seria uma outra discussão. A proposta é que esse jovem vá, ao longo de quatro anos, articulando a base de conhecimento e, ao mesmo tempo, não definindo uma educação stricto sensu, mas definindo a capacidade para rapidamente aprender uma coisa específica e se definindo para áreas. Pode se definir para a área tecnológica, ou industrial, ou de serviços. Pode existir esse horizonte. Então, o Ensino Médio integrado é uma travessia.
(...)
Porque nós temos uma realidade de um dualismo brutal. A visão do apertador de parafuso, como eu disse, e a visão da pessoa que vai ter um Ensino Médio genérico, geral, abstrato. Humanamente, é importante que o ser humano não seja um mamífero de luxo, como lembrava Gramsci, e que mesmo a pessoa que vá cozinhar entenda um pouco de cozinha, a pessoa que vai trabalhar em mecatrônica entenda a base do que é um trabalho na mecatrônica. Então, o Ensino Médio integrado seria um processo para que a gente chegasse, em um dado momento, a um Ensino Médio como base, como direito social, como eu disse, subjetivo, garantido pela Constituição, uma etapa final. E o ensino profissionalizante stricto sensu seria pós-médio, universitário, etc. Evidente que estamos aqui tentando entender o que é profissionalizar o Ensino Médio básico com essas características. É profissionalizante no sentido que ele dá a base e permite rapidamente a pessoa se integrar a um outro campo, aprender. Então o Ensino Médio integrado de quatro anos, e não de três, não pode ser três mais um, senão esse um vai ser o adestramento. E é engraçado como em vinte anos a ditadura deseducou a sociedade brasileira, deseducou os professores, os pais, porque se fala em Ensino Médio integrado, já se diz profissionalização direta, é uma coisa impressionante. Há um trabalho de desconstrução da ideia de que existem seres humanos, que não são apenas macacos domesticáveis. Nós temos que fortalecer o direito de cidadania e de que esse trabalhador dispute, inclusive com mais dignidade, a vida em um país onde tudo é muito desigual. Eu sempre pergunto aos meus alunos: "Por que na Escócia o salário mínimo é 4 mil reais? Por que em Portugal, que é um país pobre, é 2 mil reais o salário mínimo? E comparando, mesmo com os custos de vida separados, aqui o salário mínimo é muito baixo". Então, se esse trabalhador entender isso, todo mundo ganha, vai ter menos favela, vai ter menos jovem morto, vai ter mais vida, é essa a ênfase do Ensino Médio, social e subjetivo.

Salto – Professor Gaudêncio, hoje seria mais adequado falar a palavra juventude no plural, as juventudes. O senhor vê as culturas juvenis sendo consideradas no Ensino Médio? E como é possível incorporá-las?
Gaudêncio Frigotto – Primeiramente, eu já falei que acabo de fazer um documentário em que a antropóloga Regina Novaes participa? Ela diz o seguinte – como a autoria não é minha, é importante citar a fonte – "que só tem sentido falar juventude no singular do ponto de vista geracional, que é verdade. Eu faço parte de uma geração que já não é jovem". E ela chama muito a atenção para o que as gerações passadas já fizeram de avanços. Por exemplo, não é problema hoje, numa mesma família, ter três religiões, porque na minha juventude era problema. Não há problema hoje discutir abertamente, pelo menos na maior parte das famílias, a sexualidade, a iniciação sexual antes de casar, até porque o casamento mudou muito, etc. A geração que está aqui agora tem medo do futuro, e do ponto de vista social, cultural, são juventudes, mas não podemos também fragmentar tanto, porque perdemos de vista determinadas realidades sociais. Há uma clivagem de classe, de vender a força de trabalho, uma diferença de classe. E, depois, temos diferenças como campo e cidade, diferenças culturais, diferenças de dialeto. E aí sim, um processo pedagógico que queira ser de fato pedagógico tem de partir da realidade posta, como está, não impor a priori uma cultura. O sujeito que conhece, e que busca o conhecimento, esse é o ponto de partida e o ponto de chegada. Há um equívoco sempre que nós separamos particularidade e universalidade. Eu estou aqui falando com você porque eu saí de minha particularidade, mas porque também respeitaram a minha particularidade. Eu, até os sete anos, falava o dialeto do norte da Itália, porque eu tive uma professora bilíngue que me ensinou a falar a língua portuguesa razoavelmente, e eu pude seguir, e me tornei mais universal.
Eu estou aqui podendo fazer isso porque alguém entendeu a minha cultura e não só meu modo de falar. Eu fiz a travessia do dialeto para a língua portuguesa, e depois eu fui estudar o italiano clássico. O ponto de partida é sempre a particularidade, mas nós nos tornamos cada vez mais seres humanos completos quando caminhamos para uma universalidade mais ampla. Então, não há uma dicotomia entre o universal e o particular. O grande problema é que os currículos e a escola tendem a impor, de cima para baixo, uma cultura que normalmente é a cultura de um determinado grupo social que atua como universal e, na verdade, é particular, e sonega e até silencia saberes. É interessante, estou orientando um professor de nível médio da Osvaldo Cruz, que está fazendo um trabalho fantástico sobre qual é a diferença entre ensinar coisas e ajudar as pessoas a aprender. Então, ao desenvolver narrativas da ciência, a pessoa se aproveita do conhecimento existente, e a partir daí, do conhecimento que ela tem, vai desenvolvendo conhecimento. É assim que se cria. O grande drama nosso é que somos da cultura da cópia, do mimetismo, e isso se reflete brutalmente na escola. Temos que levar em conta, sim, as particularidades como ponto de partida, e que elas se enriqueçam e criem uma universalidade, que é exatamente a interligação dessas particularidades. Há hoje uma tendência na universidade de nos fixarmos na alteridade. Nós podemos fazer muitas ilhas, e o ponto de partida, que tem que ser respeitado, é fundamental. Nós somos gênero masculino e feminino, mas somos humanidade também. Eu costumo dizer que tenho 49% de mulher (...). Então, esse é o núcleo fundamental de entender as diferentes juventudes – juventude do campo, da cidade. Falar do jovem que está na cultura pressionado pelo Estado e pelo tráfico, essa realidade é produzida, eu não tenho que moralizar em cima disso, eu tenho que entender isso. A materialidade que ele tem ali é a violência, então a violência tem que ser uma matéria de pensamento, não apenas uma condenação a priori, como se fossem monstros criados por ETs, ou por espíritos diabólicos. Não! Eles são socialmente constituídos, e não adianta o Estado dar prêmio para o professor melhorar essa situação, se são não melhorarmos a materialidade que produz essas vidas. Esse é o grande desafio.

Salto – O senhor disse que terminou recentemente um documentário voltado para os alunos do Ensino Médio. Como foi e o que esse documentário discutiu?
Gaudêncio Frigotto – Na verdade, o documentário é a confluência de duas pesquisas: uma sobre o Ensino Médio, e outra que tenta analisar as políticas públicas de formação, emprego e renda para jovens de classe mais popular. A ideia é mostrar que a educação é um direito, é importante, mas ela tem uma outra ponta que depende da sociedade. E esta ponta está bastante complicada, é a ideia de vida provisória e em suspenso. Essa expressão eu tomo de um psicanalista austríaco, que ao sair do campo de concentração, nos anos 40, comparava o tuberculoso, que está no sanatório e não sabe se sai, ou não sai, com quem está em campo de concentração, quem está desempregado, são situações de vida provisória e em suspenso. Então, eu vou captando, no documentário, exatamente esta realidade do jovem, que ele hoje não pode casar, no sentido mais amplo de casamento, juntar com o par e ter vida própria, porque não tem renda, e se tem renda é uma renda instável, que não pode alugar, não pode comprar... Com uma renda instável, ele não pode programar o futuro, não pode programar o filho. É uma pesquisa que tem que mostrar que o direito à educação, e mesmo o direito a uma educação de qualidade, não garante hoje um futuro para o jovem. Então, a juventude hoje é pauta da política dos grandes centros dirigentes do mundo, das conferências mundiais, da comunidade européia, da comunidade latino-americana. A juventude se tornou um problema, um problema de como lhe garantir futuro, e isso deve rebater na escola, porque dos anos 50 para cá foi-se criando a ideia de que a escola era uma espécie de extensão da fábrica, era o domínio do mercado, e o jovem é muito sensível e percebe isso. Mesmo o jovem alemão, o jovem inglês, francês, estou falando aqui de realidades muito distintas. A promessa integradora da escola está se diluindo, se desmanchando. Então, há dois tipos de jovens hoje: os que sacrificam a juventude para tentar estágios, concursos, disputar o mercado de trabalho, um nicho de mercado de trabalho que lhe permita programar futuro. E uma grande massa de jovens que optam por viver o dia-a-dia. Sem falar daqueles jovens que são quase que socialmente invisíveis, porque formam outro estado – um estado paralelo – e que são confrontados pelo Estado. Nós temos isso com clareza. No Rio de Janeiro, na verdade, o chamado choque de ordem penaliza determinados grupos, especialmente jovens. As estatísticas estão aí e não me deixam mentir. Então, é um documentário que tenta chamar a atenção para o debate que deve haver na escola: que nós não podemos mentir para o jovem. Eu não sou daqueles que dizem "a escola não responde a tudo, então vamos desescolarizar". Não! Pior que uma escola ruim é nenhuma escola, porque pelo menos se ela está aí, ela se reúne com os jovens. O documentário é outra linguagem, ele permite debate, evidentemente que é um debate em cima de pesquisa, ele já tem uma interpretação, mas não é a única interpretação.

Salto – Professor, como você vê as diretrizes do MEC no sentido de promover o Ensino Médio, chamado de Ensino Médio Inovador, com propostas curriculares que tenham mais proximidade com essa realidade dos alunos?
Gaudêncio Frigotto – Eu conheço muito bem as pessoas que organizaram o documento. Eu acho que, do ponto de vista de conteúdo, o documento está muito bom, em especial, a justificativa. Eu não denominaria Ensino Médio Inovador, porque o que é o Ensino Médio não inovador? Essa palavra, da mesma forma que integrado, traz problemas, mas inovador é uma presunção em materialidade, eu diria. Claro que é experimental, não sou um crítico "cri-cri". Onde é que está a minha crítica? Os educadores, durante a década de 80, se bateram muito para ter um Ensino Médio público, gratuito, universal, unitário, que desse essa base interpretativa. Os educadores da década de 80 lutaram por uma escola básica e unitária. Veio a década de 90, houve o Decreto n. 2.208/96, ou 97, que separa a educação básica geral, da profissionalizante. Isso foi depois legislado por um conselheiro. O governo atual muda esse decreto e produz o Ensino Médio Integrado, e agora vem o Ensino Médio Inovador. Os três decretos foram legislados pelo mesmo conselheiro, então eu comparo isso ao que é o poder na sociedade. Há os grupos que têm poder na sociedade, o poder de moldá-la de acordo com os seus interesses. Então, até que não exista uma mudança disso, e esse é um problema que tem que vir de baixo para cima, nenhuma sociedade muda pelo alto. Esse é um nó que nós temos, que nos leva a limitar as perspectivas, precisamos ter um tempo de mudança, até porque, para concluir isso, temos mudanças de políticas de governo. O sociólogo Luiz Antônio Cunha chama de política "zigue-zague", quando sobe um governo muda, quando sobe outro muda, e nós não temos uma continuidade. Para ter esta continuidade, temos que lutar por políticas de Estado, isto é, que sejam políticas da sociedade e com o controle da sociedade.

Salto – O novo ENEM tem sido visto como um novo mecanismo de acesso ao Ensino Superior, possivelmente mais justo que o vestibular. Como é que o senhor vê esse novo ENEM? E existiriam outros mecanismos de acesso ao Ensino Superior que poderiam ser incorporados ao processo de entrada nas universidades?
Gaudêncio Frigotto – Olha, essa é uma questão bastante controversa. Primeiro, de modo geral, eu acho que não muda muito, porque o problema está antes da escola. Eu mencionei anteriormente o dado dos jovens que são futuros candidatos à universidade. Deses jovens, só 25% fazem o nível médio em idade adequada. Então, o fato de não fazer o Ensino Médio em idade adequada significa que o jovem foi mutilado do seu tempo histórico e já há uma perda, que se recupera, claro. Depois eu coloquei que 60% dos que fazem Ensino Médio em idade menos defasada, e o fazem no turno diurno, têm o professor assoberbado, sem muita infraestrutura. Então, o problema é anterior, porque o acesso ao ensino é desigual, em escolas desiguais etc. O ENEM é uma boa medida da desigualdade educacional, muito mal usado pela imprensa e pelas escolas, como ranking do melhor ou pior. Acho que todo Estado tem obrigação de medir, avaliar, diagnosticar, mas não usar essas medidas como parâmetro de competitividade.

Salto – Por que o novo ENEM, na sua opinião, não seria o melhor mecanismo?
Gaudêncio Frigotto – O problema de acesso à universidade é anterior à escola. A escola, evidentemente, é que vai ser a mediação, porque o acesso à escola é desigual. Poucas das pessoas que têm o acesso ao nível médio não precisam de cursinho. É um problema que está na sociedade, na desigualdade que existe na sociedade. É por isso que o uso do ENEM está sendo des-educativo como ranking. Comparar alunos de escolas diferentes, localizadas em realidades diferenciadas, é uma falta de senso de realidade. É importante fazer o ENEM como diagnóstico do Ensino Médio, que mostra exatamente a desigualdade refletida na escola e que está na sociedade. Eu acho que existem várias formas de acesso à universidade, por exemplo, na Argentina, todo mundo praticamente entra na universidade, só que o crivo está dentro. A gente poderia compor critérios de avaliação do nível médio com acesso à universidade, mas aí você teria que ter de fato e, nacionalmente, um Ensino Médio com bases muito similares. E o Ensino Médio está organizado pelos estados, e cada estado tem a sua política, então tem muitas variáveis para transformar o acesso do Ensino Médio à universidade. O exame do ENEM, como é padronizado, pode levar a uma distorção, por ser o reflexo de realidades muito distintas, por estar medindo coisas muito diferentes, ou penalizar determinados grupos, dada a diferença inclusive regional que nós temos, a diferença de propostas curriculares. As universidades públicas tentaram exatamente organizar um vestibular que buscasse elevar a qualidade do Ensino Médio e não houvesse a necessidade do cursinho. Essa foi uma direção bastante interessante, quando se saiu do vestibular das agências ou grupos que elaboravam os vestibulares. Esse processo acabava por estimular muito os cursinhos. Há vestibulares feitos por equipes que privilegiavam a análise de textos, mas isso também seleciona, porque aquele aluno que faz o curso noturno, que não teve aula durante um período, por exemplo, de língua portuguesa, sobre interpretação de texto, como ele vai chegar lá? O problema da seletividade está na sociedade, que se reflete na escola. A escola, se for democrática e, portanto, com investimentos fortes, pode oferecer um padrão mais equânime. Aí sim haverá uma base mais justa, independente da classe social, para ascender.

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